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São Paulo: Nobel, 1991 Fui chamado a esta comissão do Senado para dar meu depoimento sobre a recente negociação dos juros atrasados da divida externa brasileira. Darei minha visão sobre este assunto específico e sobre o problema mais geral da negociação principal da dívida externa. Aproveitarei, entretanto, a oportunidade para relacionar essa negociação da dívida externa com a dramática perda de apoio que o governo brasileiro vem sofrendo a nível internacional e, internamente, junto à sociedade civil do país. Essa perda de apoio, que na verdade se constitui em uma crise de credibilidade e de legitimidade, dificulta a negociação da dívida externa, cuja orientação vem sendo essencialmente correta, ao mesmo tempo em que deixa a nação perplexa em relação a seu futuro.

 A estratégia geral sobre a dívida 

O govemo brasileiro vem adotando uma estratégia fundamentalmente correta em relação à dívida. A tese do Brasil é a de que o país não tem condições de pagar toda a sua dívida de longo prazo a não ser com um desconto de 40 a 50 por cento no que diz respeito à sua dívida para com os bancos comerciais e o Clube de Paris. Nesses termos, apenas a dívida de longo prazo para com as agências multilaterais não sofreria redução.

A necessidade dessa redução deriva, de um lado, da restrição cambial, e de outro, da restrição fiscal.

Restrição fiscal. Cerca de 90 por cento da dívida externa é pública. Os juros sobre essa dívida significam déficit público. Dada a profunda crise fiscal em que está imersa a economia do país, não é razoável exigir que o governo pague ou mesmo continue a ser debitado por todos esses juros. Uma redução pela metade da dívida de longo prazo para com os bancos comerciais e o Clube de Paris poderia representar uma economia em dólares anual de cerca de 4,5 bilhões de dólares, correspondendo a uma redução do déficit público de cerca de 1,5 por cento do PIB, Dado o imenso sacrifício, representando pelo ajuste fiscal, que é necessário realizar internamente, parece razoável que os credores externos partilhem conosco esse sacrifício.

Restrição cambial. O Brasil não pode realizar superávits comerciais às custas da recessão interna permanente. Neces sitamos importar mais para exportar mais ainda. Um superávit comercial de cerca de 12 bilhões de dólares (3 por cento do PIB) deveria ser suficiente para o pagamento dos serviços, inclusive os juros, € garantir um superávitem conta corrente. Nos últimos dois anos, porém, os serviços totalizaram cerca de 15 bilhões de dólares, dos quais cerca de 9 foram de juros, 3 de serviços reais e 3 de dividendos, repatriações e outros serviços.

É preciso observar, entretanto, que a restrição cambial é menos grave que a fiscal. A redução da dívida poderia ser menor se fosse compensada por maiores investimentos diretos externos. Ou, mais genericamente, se as empresas multinacionais voltassem a ter um balanço positivo com o Brasil. Hoje esse balanço é negativo, na medida em que os dividendos e repatriações superam em cerca de 2 bilhões de dólares os investimentos anuais.

Uma demonstração significativa de que, do ponto de vista cambial, dado o reduzido volume de investimentos que vêm sendo realizados no Brasil, necessitamos de uma redução de 50 por cento na dívida nos é dada pelo comportamento de nossas reservas internacionais. Nos últimos vinte meses o Brasil não vem pagando juros aos bancos comerciais. Acumulou nesse período atrasados de 8 bilhões de dólares, enquanto suas reservas cresciam de 5 para 9 bilhões de dólares. Se houvésse mos tentado pagar todos os juros, nossas reservas teriam há muito desaparecido. Não pagando 8 bilhões, nossas reservas aumentaram em apenas 4 bilhões de dólares. Nesses termos, para não ter atrasados e manter o nível de nossas reservas, precisaríamos de uma redução dos juros e portanto da dívida, próxima a 50 por cento. Isso é duplamente verdade se lembrarmos que, para estabilizar a moeda, deveríamos estar aumentando nossas reservas internacionais, de forma a constituir um lastro crescente para o cruzeiro.

 O acordo sobre os juros 

A partir, basicamente, dessa análise, o Brasil fez, em outubro passado, sua proposta aos bancos comerciais. Ofereceu três alternativas em relação ao principal: pagamento em 45 anos sem desconto nominal, e em 25 ou 15 anos, com desconto. Na verdade, o desconto existe também na proposta de 45 anos, na medida em que o Brasil se propõe a pagar a taxa de juros para empréstimos com prazo normal (libor). Não é possível calcular com precisão quanto foi o desconto embutido nas propostas brasileiras, mas pode-se admitir que tenha sido entre 40 e 50 por cento do principal. A proposta brasileira é, portanto, perfeitamente coerente com as possibilidades de pagamento do país.

Os bancos comerciais, entretanto, apoiados por seus govemos e pelas agências multilaterais, recusaram-se a negociar o principal enquanto não fosse resolvido o problema dos atrasados. Depois de uma competente negociação, o Brasil concordou, afinal, em pagar no máximo 2 bilhões de dólares, que serão tirados de suas reservas, enquanto os demais 6 bilhões são transformados em bônus a serem pagos a longo prazo, depois da negociação do principal.

Uma pergunta que surge imediatamente é: por que o Brasil está concordando em fazer mais esse acordo provisório? Porque, para pagar qualquer coisa, não exige que o acordo sobre o principal seja firmado?

Minha resposta mais geral para essa pergunta é simples: porque, dado o apoio que os bancos comerciais obtiveram dos seus govemos e particularmente do governo dos Estados Unidos, a alternativa que mais consulta os interesses nacionais é fazer esse acordo. O Brasil tem interesse em assinar um acordo stand by com o FMI. Precisa recuperar minimamente a confiança internacional. O acordo com os bancos comerciais é, neste momento, um fato positivo nessa direção. Em certos momentos é preciso defender o interesse nacional confrontando se com os interesses dos demais países. Em outros momentos, é preciso conciliar, fazer concessões. Estamos tipicamente em um destes momentos.

Trata-se, portanto, de um recuo, de uma concessão? Sem dúvida. Mas às vezes recuos estratégicos são fundamentais, especialmente se os adversários, no caso os bancos comerciais, forem capazes, naquele momento, de reunir for-
ças extraordinárias.

Mas por que lograram os bancos esse apoio tão forte de seus governos? Por que o FMI se recusou em 1990 a assinar um acordo com o Brasil apesar de ter aprovado a carta de intenção brasileira? Por que o G-7 tomou a decisão, em sua última reunião, de pressionar o Brasil, através das agências multilaterais, a ceder aos bancos? Por que o BID, a partir do voto do representante dos Estados Unidos, recusou um em préstimo ao Brasil?

A razão fundamental está na perda de credibilidade do governo brasileiro. Essa perda de credibilidade, que vem ocorrendo de forma dramática no plano interno, ocorreu também em nível internacional. No primeiro semestre de 1990, a posição do Primeiro Mundo era muito mais favorável ao Brasil. Estive em Washington em julho de 1990 e em abril de 1991. Amudança de atitude dos dirigentes das agências multilaterais e mais amplamente do Primeiro Mundo em relação ao Brasil foi enorme. Por quê?

Em 1990 havia grandes esperanças em relação ao novo governo brasileiro. O discurso moderno. As reformas liberalizantes. A coragem e a firmeza do ajuste fiscal falavam a favor do governo. E esse apoio tornou-se completo quando, em maio, o governo brasileiro adotou uma estratégia monetarista, rigorosamente ortodoxa, em relação à inflação. Esse equívoco das autoridades brasileiras foi também um equívoco das autoridades de Washington. O FMI, em setembro de 1990, aprovou a estratégia brasileira de combate à inflação praticamente in totum.

Previsivelmente a estratégia fracassou, porque era uma estratégia equivocada. Entretanto, quando ocorreu o fracasso, quando ficou claro que a inflação estava de volta, a culpa coube exclusivamente ao governo brasileiro. Ao invés de admitir que a estratégia estava equivocada, que não se combate inflação inercial, indexação informal da economia, com metas monetárias, passou-se a dizer em Washington que o governo brasileiro fracassou porque foi populista, porque não teve suficiente firmeza no controle monetário, porque não quebrou maior número de empresas e bancos (em setembro houve um pequeno afrouxamento da política monetária em função da quebra de bancos). As taxas de juros altíssimas de 1991, causa fundamental da recessão atual, foram esquecidas.

Os norte-americanos têm um provérbio: Nothing succeeds like success. O inverso é verdadeiro. O fracasso tem um efeito multiplicador. E o culpado é sempre quem fracassou. Nunca quem apoiou as estratégias equivocadas.

 A dificuldade de dialogar 

Por outro lado, em suas relações internacionais, o Brasil revelou neste último ano uma estranha inabilidade, uma enorme dificuldade de dialogar, que conflita com o discurso moderno, tão ao agrado do Primeiro Mundo. A reação à iniciativa Bush, de junho de 1990, foi de cautela e desconfiança, Em um momento histórico, em que o presidente dos Estados Unidos oferecia a oportunidade da criação de uma zona de livre comércio com a América Latina, o Brasil, ao invés de apoiar com firmeza a iniciativa, concluiu que “faltava conteúdo”” à sugestão norte-americana, que era preciso esperar. A visita do presidente Bush, alguns meses depois, ao Brasil foi um fracas so, Não soubemos aproveitar a Guerra do Golfo para melhorar nossas relações com os Estados Unidos. Não precisávamos chegar ao ponto da Argentina, mas é claro que uma atitude de apoio mais firme só nos teria fortalecido. Nossa proposta em relação à dívida externa, embora absolutamente correta, pareceu ao Primeiro Mundo excessivamente ousada, se não arrogante. Os bancos internacionais, a partir dessa proposta e da continuidade da moratória, conseguiram inclusive convencer as autoridades de Washington de uma óbvia inverdade: que o Brasil não pretendia pagar nada de sua dívida externa.

Dessa forma, ao mesmo tempo em que fracassava internamente a política de estabilização, desgastava-se a imagem moderna do novo governo, na medida em que suas relações internacionais lembravam muito o velho nacionalismo revestido de modernismo que marcou o regime militar brasileiro.

Por outro lado, está claro que o desgaste do governo internamente afeta a credibilidade externa e vice-versa. A perda de apoio da sociedade civil ao governo, nestes últimos meses, vem ocorrendo de forma acelerada e preocupante. A
profunda recessão e a retomada da inflação estão na base desse fenômeno, mas da mesma forma que ocorre em nível internacional, em que a deterioração das relações e o enfraquecimento do governo decorreu também de sua inabilidade, em nível interno a crise do governo, sua perda de apoio junto à sociedade civil, está diretamente relacionada com a incapacidade desse governo de ouvir e dialogar.

O governo parece disposto a entrar em conflito com todos os setores. E, quando sofre críticas, responde com agressões.

Imagina dessa forma afirmar sua autoridade, mas, na verdade, a enfraquece. Afasta empresários, intelectuais, jornalistas, líderes sindicais, líderes políticos do governo. Em consequência, o governo perde credibilidade. A crise assume caráter cada vez mais político. O governo sente-se perseguido e fala em conspiração, quando não há qualquer conspiração, há apenas perplexidade.

É neste quadro que os negociadores da dívida externa brasileira, enfraquecidos pela perda de credibilidade do governo em nível nacional e internacional, fecharam este acordo provisório. Trata-se de um bom acordo. Do acordo possível neste momento.

Em seguida teremos a negociação do principal. A decisão do Brasil de passar a pagar 30 por cento dos juros é acertada. Podemos pagar pouco mais do que isso. Pagando essa quantia, estamos dando uma indicação clara de que estamos decididos a pagar o máximo que é razoável, uma vez feito o acordo sobre o principal. E fundamental que essa posição fique clara para os governos dos bancos credores, Devemos esperar uma negociação demorada. Mas, enquanto estivermos pagando os 30 por cento, estaremos demonstrando nossa disposição de ser um membro responsável da comunidade internacional.

Vivemos hoje momentos difíceis no país, Foram cometidos erros na política de estabilização, erros partilhados por muitos que hoje criticam as autoridades monetárias. Foram cometidos erros no relacionamento com a comunidade internacional e com a sociedade civil brasileira. Esses erros levaram o país não apenas a uma crise econômica que promete se agravar nos próximos meses, com a aceleração da inflação, mas também no plano político, com a paralisação do diálogo entre a sociedade e o governo, Neste momento de crise, as esperanças depositadas no Judiciário e no Congresso vêm aumentando dia a dia. Temo que essas esperanças sejam infundadas. O Judiciário é, por
definição, um poder limitado. O Congresso, em um regime presidencialista, pode muito pouco. Muito menos do que se espera deles.

De qualquer forma estou convencido de que o momento é de negociação, é de intermediação. Não apenas em nível internacional mas também em nível nacional. E tenho a convicção de que o Senado poderá representar um papel importante nesse sentido. As orientações básicas do Executivo estão na linha certa, como o Projetão deixou muito claro. Como a negociação da dívida extema vem demonstrando. Existe, entretanto, uma enorme crise entre a sociedade e o governo, uma crise que poderá ter consequências muito graves para a Nação se não houver ação imediata para restabelecer o diálogo e a confiança. (Depoimento perante a Comissão de Finanças do Senado. Brasília, 7 de maio, 1991.)


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DETALHES SOBRE O AUTOR
bresser-pereira Os tempos heróicos de Collor e Zélia: Dívida externa e crise do governo - Revista Manutenção
Bresser-Pereira
Nome: Bresser-Pereira
Website: http://www.bresserpereira.org.br/
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Dr. em Economia, Advogado e Professor


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APRESENTAÇÃO:

Autor, entre outros livros, de Construindo o Estado Republicano (FGV, 2004), Macroeconomia da Estagnação (Editora 34, 2007), Globalização e Competição (Campus, 2009), Macroeconomia Desenvolvimentista (Elsevier, 2014, com José Luis Oreiro e Nelson Marconi) e A Construção Política do Brasil (Editora 34, 2015). Suas pesquisas atualmente concentram-se no novo desenvolvimentismo, sua macroeconomia e sua economia política.

FORMAÇÃO ACADÊMICA E EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL:

Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas onde pesquisa e ensina teoria econômica e teoria política desde 1959. Ele foi Ministro da Fazenda (1987) e Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995-98) e Ministro da Ciência e da Tecnologia (1999). É doutor honoris causae pela Universidade de Buenos Aires. Recebeu o prêmio Juca Pato, de melhor intelectual do ano, em 2015.


 

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