Entrevista com J.L. Fevereiro: Caminhos para reindustrializar o Brasil

Entrevista com J.L. Fevereiro: Caminhos para reindustrializar o Brasil

Esqueça as velhas indústrias, propõe o economista. Resgatar o país exigirá conectar setor produtivo às políticas de Bem-Estar, compreendendo a profunda reorganização do trabalho em curso. Para isso, participação do Estado será crucial.

José Luís Fevereiro, em entrevista a João Vitor Santos, no IHU Online

Na atual conjuntura econômica e social, parece óbvio que o Brasil necessita urgentemente de um projeto de industrialização. Mas as polêmicas em torno do tema, assinala o economista José Luís Fevereiro, “começam aí”, com questões básicas: Como financiar um projeto de desenvolvimento? Em que modelo de industrialização investir? Qual será o papel do mercado interno neste processo?

Segundo ele, o “maior trunfo em qualquer política industrializante” que o Brasil vier a adotar “é o tamanho potencial do nosso mercado interno. Isso precisa ser dinamizado com políticas de valorização do salário, com redução do desemprego e com o fortalecimento de áreas de produção com maior valor agregado e com densidade tecnológica. O caminho não será a recuperação das velhas indústrias perdidas, mas a abertura de novas áreas. O complexo da saúde, por exemplo, tem enorme potencial. Precisa do Estado nisso. Todo o processo de industrialização do século XX teve o Estado na linha de frente. Não será diferente agora”.

Seja lá qual for o caminho a ser trilhado pelo país no futuro, “compreender a profunda reorganização do trabalho em curso é essencial para formular políticas de trabalho e renda. Esse é o grande desafio”, assegura.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Fevereiro também defende “uma renda básica focada” em contraposição à proposta de uma renda básica universal. “Universal, sou contra. Ou seria muito baixa ou não seria universal. Somos um país de renda média e isso coloca limitações produtivas a uma renda básica universal. Defendo uma renda básica focada”. E justifica: “A renda básica não pode ser vista como substituta do direito ao trabalho, mas como uma medida de garantir sobrevivência a quem está fora do mercado de trabalho. Ela precisa funcionar como anteparo à degradação do trabalho e as contratações a valores aviltantes”.

Confira a entrevista

O senhor tem manifestado que o Brasil “quebrou” em 2014 devido às políticas econômicas adotadas até então. Gostaria que detalhasse sua tese, apontando as fragilidades dessas políticas econômicas empregadas nos governos petistas.

Eu nunca disse tal coisa. O Brasil não quebrou em 2014, nem depois, nem corre esse risco. Países não quebram em moeda nacional. A última vez que o Brasil quebrou foi em 1999 – e quebrou em dólares. Hoje, o Brasil tem mais de US$ 300 bilhões em reservas e isso torna o risco de quebrar muito distante. Esse espantalho é utilizado por economistas do mercado financeiro como terrorismo para justificar políticas de ajuste fiscal cujo objetivo inconfesso é gerar desemprego e, portanto, redução no custo do trabalho.

As políticas dos governos petistas tiveram méritos e defeitos. Acumular reservas internacionais foi um mérito. Isso aumentou nosso grau de independência. A valorização do salário mínimo, as políticas de renda básica, os programas habitacionais, foram méritos. Não enfrentar o capital financeiro nos dois governos Lula, quando o capital político era maior, foi um erro. Capitular a agenda da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP ao desonerar a indústria, reduzindo o investimento público no primeiro governo Dilma, foi um erro. O setor privado não investiu e o setor público reduziu o investimento. O segundo governo Dilma foi o desastre completo.

Que experiências ao longo da história do Brasil podem ser interessantes para construirmos um novo projeto de país?

Períodos históricos distintos demandam medidas distintas. Mas faz falta um projeto de país. O Brasil perdeu a capacidade de planejar a médio e longo prazo. Que modelo de economia teremos? Como internalizar novas tecnologias, gerando novas cadeias produtivas nacionais? Nos anos 1950, tivemos essa capacidade. Na ditadura militar, dentro de um projeto excludente e concentrador de renda, também tinha planejamento, projeto de país. O comando liberal da nossa economia prescinde do planejamento. É um desastre. A crença religiosa de que o mercado proverá é insana.

Quais os autores que devem ser lidos para se compreender o Brasil e, a partir dessas leituras, fundamentar um projeto de país?

Muitos e em muitas áreas. Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Carlos Lessa e Celso Furtado. Tem uma nova geração que deve ser lida também na área de economia: Pedro Rossi, David Deccache, Laura Carvalho… Certamente, estou esquecendo de muita gente.

Que aspectos devem ser levados em consideração para conceber esse projeto de Brasil?

Somos um país de mais de 200 milhões de habitantes em um território continental. Precisamos ter uma economia diversificada. Exemplos de nações que se especializaram em alguns poucos nichos produtivos não nos servem.

Temos um mercado interno com potencial enorme. Temos o maior sistema de saúde público do mundo. Temos a maior diversidade biológica do planeta. Por que não temos uma indústria farmacêutica complexa, própria, com capacidade de pesquisa, produção, consumo interno e exportação? Que vantagem comparativa nos falta?

Temos uma enorme demanda de gastos em infraestrutura urbana: saneamento, mobilidade, habitação. Temos empresas capacitadas, temos mão de obra. O que nos falta?

Temos 8500 quilômetros de costas marítimas, temos uma das maiores áreas de sol do planeta, temos áreas com grande capacidade de geração de energia eólica. O que nos falta para ter uma indústria de produção de energia de primeira linha?

Os desenvolvimentismos são capazes de nos trazer respostas para a concepção de um projeto de Brasil? Por quê?

Há muitos tipos de desenvolvimentistas. Hoje, isso define pouco o pensamento econômico. Qualquer um que defenda planejamento e industrialização já é considerado desenvolvimentista.

O Brasil precisa de mais planejamento econômico e de um projeto de industrialização. Mas as polêmicas começam aí. Como financiar? Que modelo de industrialização? Qual o papel do mercado interno? Tem “desenvolvimentista” que defende ajuste fiscal, por exemplo, que defende redução do custo do trabalho para ganhar mercado externo. Isso não tem como dar certo.

O nosso maior trunfo em qualquer política industrializante é o tamanho potencial do nosso mercado interno. Isso precisa ser dinamizado com políticas de valorização do salário, com redução do desemprego e com o fortalecimento de áreas de produção com maior valor agregado e com densidade tecnológica. O caminho não será a recuperação das velhas indústrias perdidas, mas a abertura de novas áreas. O complexo da saúde, por exemplo, tem enorme potencial. Precisa do Estado nisso. Todo o processo de industrialização do século XX teve o Estado na linha de frente. Não será diferente agora.

Quais são os eixos centrais das propostas políticas do PSOL para 2022? O que é impreterível no plano de governo que estão construindo?

José Luís Fevereiro – Acabar com o teto de gastos, recuperar a capacidade de investimento da União, desmontar o discurso fiscalista e não ter receio de emitir moeda e emitir dívida enquanto tivermos mão de obra disponível e capacidade produtiva ociosa. Isto é pressuposto. Recuperar a capacidade de investimento das estatais e tornar a Petrobras uma empresa pública de novo, nem que para isso seja necessário tirar as suas ações da Bolsa de Nova York.

Outra proposta é um grande programa de obras de infraestrutura urbana em parceria com os estados em troca da dívida deles com a União (esta dívida é impagável), e uma nova política industrial capaz de gerar complexos produtivos novos, que reduzam a nossa dependência das exportações de primários e semielaborados. Ao mesmo tempo, a valorização do salário mínimo, programas de renda mínima e demais medidas de fortalecimento da demanda interna.

Como analisa as propostas de PT e PDT para superação das crises econômicas e sociais no Brasil? No que se aproximam e no que distanciam das concepções do PSOL?

Das propostas do PT, ainda estou aguardando mais informações. Em alguns pontos, pelo que sei, têm avançado no bom caminho. A ver o que sobrevive da formulação até a campanha de 2022. Das do PDT, vejo muitos problemas: não têm projeto nacional de desenvolvimento que pare em pé com a lógica fiscalista que Ciro Gomes expressa. O estado de equilíbrio da União no médio e longo prazo é sempre em déficit fiscal: do déficit público depende o superávit privado. É impressionante como o senso comum da sociedade ignora isso e a facilidade que a mídia corporativa tem de reforçar a fantasia do equilíbrio fiscal da União como algo desejável. Isso contamina até parcelas da esquerda.

Como o senhor analisa esse mergulho do Brasil numa espécie de liberalismo que desidrata o papel do Estado na economia diante da crise? Por que esse pensamento parece tão enraizado na cultura política e econômica do país?

Como já disse antes, essa lógica se baseia na economia da dona de casa. Cola no senso comum e cola numa cultura herdada do catolicismo, a cultura da contenção, do rigor, da poupança, da austeridade. Austeridade é um valor positivo na nossa cultura, mas, transposto para a macroeconomia, é um desastre.

Alguns países, como a Alemanha e até os Estados Unidos, têm investido pesado em programas sociais, reajustando sua política econômica para uma maior participação do Estado. Como analisa esses cenários?

O caminho óbvio. Eles não são socialistas, mas pensam na sobrevivência do capitalismo, que não será possível sem maior regulação e papel do Estado. A melhora das condições de vida e da empregabilidade – e aqui falo em acesso ao trabalho, não exclusivamente ao emprego – é condição necessária ao empoderamento das classes trabalhadoras e à melhoria das suas condições de barganha, seja por direitos econômicos e sociais, seja politicamente.

A partir das experiências do Bolsa Família e do Auxílio Emergencial, temos espaço para discutir uma renda básica universal no Brasil? Por quê?

Universal, sou contra. Ou seria muito baixa ou não seria universal. Somos um país de renda média e isso coloca limitações produtivas a uma renda básica universal. Defendo uma renda básica focada. A renda básica não pode ser vista como substituta do direito ao trabalho, mas como uma medida de garantir sobrevivência a quem está fora do mercado de trabalho. Ela precisa funcionar como anteparo à degradação do trabalho e as contratações a valores aviltantes.

Como atender os mais empobrecidos num curto prazo, assegurando renda e afastando o fantasma da fome?

Com programas de renda básica na linha do Bolsa Família e, emergencialmente, com o auxílio emergencial em vigor na pandemia.

Como compreendes a questão climática nesse contexto de estado de crises que temos vivido? Na realidade brasileira, como conceber propostas políticas, econômicas e sociais que atendam às demandas, cada vez mais urgentes, criadas com o aquecimento global?

Como já disse antes, o Brasil tem enorme potencial de geração de energia limpa. As energias eólica, solar e das marés ainda são muito incipientes, mas com perspectivas de futuro e com a vantagem de ser menos imprevisíveis e intermitentes. A preservação da nossa biodiversidade é essencial, por exemplo, ao desenvolvimento de uma indústria farmacológica.

O senhor é militante de esquerda desde o início da década de 1980. Como analisa as mudanças na concepção das políticas econômicas mais à esquerda desde então? E, a partir de agora, no atual contexto, o que se pode prever de um governo de esquerda ou centro-esquerda?

Compreender a profunda reorganização do trabalho em curso é essencial para formular políticas de trabalho e renda. Esse é o grande desafio. Temos mais perguntas do que respostas sobre isso. Se Lula vencer [as eleições de 2022], não basta pensar em reproduzir o que deu certo no seu governo e corrigir os erros. Será necessário muito mais do que isso. Será preciso pensar um mundo que é muito diferente do mundo da primeira década do século, com a revolução digital e a aceleração dos mecanismos de concentração de renda entre as classes e entre os países. Esse debate é necessário. Até agora, temos mais interrogações do que respostas.

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